
‘Esta crise veio para botar as coisas no seu devido lugar’ é parte da daquela sabedoria bem típica do interior. Mesmo ferindo egos, ela se aplica à atual crise econômica financeira global que deve ser analisada com cuidado, em suas varias facetas, por especialistas gabaritados nestas varias vertentes. Seria como fazer uma avaliação médica de um futuro CEO: do dermatologista ao urologista, cardiologista e pneumologista. Querer que o odontologista faça todo o serviço pode resultar num diagnostico final falho assim como seria improvável uma avaliação periodontal competente vindo de um gastrologista. A atual crise tem aspectos administrativos, contábeis e financeiros indiscutíveis, que os mestres destas áreas devem se manifestar, mas que quando se aventuram na seara econômica se arriscam por demasia.As autoridades públicas estão no seu papel quando relevam os efeitos globais da crise classificando-a de ‘marola’: é fundamental evitar o pânico, o efeito manada num panorama econômico cada vez mais comportamental e menos racional. O mesmo não se aplica aos ‘especialistas’ que defendem a tese que não há crise no Brasil, mas sim apenas ‘problemas’. Otimismo exagerado (panglosiano) é contraproducente na prevenção e gerenciamento dos efeitos desta crise que revela o estagio avançado da globalização econômica: somos uma aldeia mundial, entrelaçada tanto no crescimento e exuberância como na crise e recessão. Os anos de inflação no Brasil criaram um empresariado acostumado a sobressaltos, criatividade e a convivência com juros estratosféricos, impostos indecentemente altos e sem retorno, crédito absurdamente escasso alem de um ‘custo -Brasil’ que abriga corrupção, legislação trabalhista confusa e ultrapassada, infra-estrutura deficiente, judiciário moroso, legislativo corporativista e acima de tudo – uma máquina pública que segundo Delfin Netto, ‘de tão inchada, não cabe mais dentro do país’. Nada disto, entretanto, deixou o país mais preparado a lidar com a atual crise a não ser pelo fato que os novos problemas de lá, são velhos por aqui, o que apenas nos acostumou ‘ao bode mal cheiroso na sala’, como diz a parábola. Redução do crédito? Enquanto por lá a média é 160% do PIB, por aqui só conseguimos chegar a 40% em 2008! Desemprego? Nos EUA era 3.5% e está rumando para os 8%. Por aqui, cortesia do Plano Real e da ortodoxia monetarista, estamos estacionados à uma década nos 12%! Queda no crescimento? Por lá, os emergentes cresceram por anos a taxas de dois dígitos e agora vão para ‘apenas’ 2-3%. Por aqui graças á prioridade na estabilidade da moeda, estamos há décadas no medíocre crescimento per-capita de cerca 1.5%.A recente melhora na balança comercial, reservas internacionais e ‘risco – Brasil’ está intimamente atrelada aos avanços espetaculares do comércio e credito mundial, fruto: 1) dos excedentes financeiros que fluíram livremente pelos mercados globalizados, agora operantes quase que 24 horas, 7 por 7 ou sem parar, vindos da explosão de preços das commodities; 2) entrada no mercado mundial de quase 1.5 bilhões de novos consumidores oriundos da falência comunista na ‘Cortina de Ferro’ e URSS assim como a adaptação chinesa e hindu para economia de mercado.‘Água morro acima e fogo morro abaixo’ funcionam da mesma maneira. A EMBRAER, maior exportadora nacional depende do humor internacional (agora voltado para a pura sobrevivência das empresas) para colocação de seus produtos e os recentes cancelamentos de pedidos levou a empresa a demitir mais de 4 mil funcionários - nada que a contabilidade diária ou os rápidos prazos da compensação bancaria nacional possam evitar. Idem para a Petrobras – agora convivendo com um barril de US$40 em vez de US$ 157 (ainda não tenha sentido nos postos), fruto de uma queda na atividade econômica global que implica em igual tombo no consumo do produto e seus derivados.Quando os EUA param de comprar, o mundo para de vender: a China teve crescimento zero no fim de 2008, o Japão queda de 5% e os britânicos perto de 7%. A VALE, acostumada a aumentos anuais no minério de ferro para as siderurgias chinesas em torno de 80% (em dólar), já está trabalhando com redução de preços de 50% para 2009, cortando investimentos e custos. Os números do desemprego de europeus e americanos embora bem amargos, empalidecem diante da enxurrada chinesa que já contabilizou mais de 10 mil fabricas fechadas e 23 milhões de desempregados voltando para o interior agrícola e medieval – que tinham substituído a proteína vegetal pela animal, expandindo nossas exportações de produtos suínos, bovinos, frango e soja (usadas nas rações).Não sabemos o tamanho da crise assim como o resto do mundo, pois estamos no mesmo Titanic e tanto aqui como lá, não são boas as noticias de concordatas desde os frigoríficos nacionais às montadoras suecas que contribuem para quedas no crédito e insegurança galopante do consumidor em relação à sua renda futura. A diferença reside no nosso campo de manobra, ainda intacto. Podemos: 1) aumentar o nível de crédito via redução de compulsórios, de impostos financeiros e juros; 2)editar medida provisória alterando a lei trabalhista para legalizar acordos de redução de jornada; 3) incentivar consumo pela redução de preços via menos impostos (autos) e maiores para as empresas que garantirem empregos e 4) combater o crescente protecionismo global com redirecionamento para o mercado interno (trocar o Aerolula por um Embraer 190?), diferente do chinês, voltado para exportação. A crise trouxe o fim da arquitetura dos ganhos fáceis financeiros sobre a economia produtiva mundial, do credito abundante e o desprezo do risco, dos salários e bônus indecentes, do consumo via obsolescência forçada e status.Está colocando as coisas nos seus devidos lugares.
Roberto Musatti - Economista (USP) Mestre em Marketing (Michigan State) Professor da REGES
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